Saiu de Portugal aos 17 anos, rumo ao Brasil, como muitos na altura. Aí passou 18 anos da sua vida. No entretanto, acumulou experiências únicas, aventuras incríveis como só alguém que teve um bar durante o Carnaval do Rio pode saber. Foi dono de uma farmácia, onde ganhou alguns conhecimentos sobre saúde. Investiu e ganhou, investiu e perdeu, sempre com determinação.
Ao fim desse tempo, e sentindo os tempos de crise no Brasil, volta a Portugal, onde conhece a esposa e emigra uma vez mais, desta feita para os EUA. É neste país que se estabelece finalmente, desta vez como homem de família. No peito, uma enorme saudade pela família e pela sua terra. Longe vão as aventuras em terras brasileiras. Nos EUA ficará para sempre reconhecido como um excelente profissional, ao qual lhe imploraram que continuasse a trabalhar quando atingiu a idade da reforma. Mesmo depois da primeira vitória sobre o cancro, com a remoção de metade de um pulmão, não parou de trabalhar.
Foi graças a ele que eu tive o meu primeiro walkman em 1986, quando tal ainda se desconhecia por estas bandas. Foi graças às conversas dele que eu comecei a perceber um pouco sobre política, economia e culturas estrangeiras, sobre interesses, sobre Bretton-Woods e negócios internacionais. Foi graças a ele, 10 anos mais velho que o meu pai, que eu percebi de onde vinha o hábito familiar de estar sempre a contar piadas e de gozar com tudo e todos.
Lembro-me de uma vez, com 12 anos, em que estava a olhar para uma rapariga, na cidade de onde ele é oriundo. Era notório que eu estava interessado e (digo-o agora, na altura não o sabia) era notório que ela também estava. Contudo, eu estava bloqueado por aqueles inibidores naturais potentíssimo: a parvoíce e o medo. Acho que, na minha cabeça, esperava que alguma intervenção divina criasse uma situação de contacto. O meu padrinho, apercebendo-se desta situação, decidiu que era altura de uma conversa frontal.
Com o seu olhar malandro, de quem já viu e viveu muito, diz-me ao ouvido: “Estás à espera que ela te caia em cima? O teu avô sempre disse que só nos arrependemos dos riscos que não corremos. Vai lá! Se correr mal, nós vamos te gozar, vamos te xingar (ele nunca perdeu certas expressões brasileiras), mas tu vais saber que tentaste. Lembra-te que mais vale falhar que não tentar.”
Outros episódios se poderiam contar, outras vezes em que ele, mesmo a 7.000 kms de distância, conseguiu estar presente. Peripécias dos seus 18 anos de solteiro no Brasil, com ladrões, espertalhões, aventureiras, donzelas apaixonadas, bêbados do Carnaval, extorsionistas e outros. Ou de como sempre tentou conciliar tudo e todos, pois não suportava a ideia de uma família dividida. Ou ainda de como, um a um, foi chamando todos os irmãos para o pé de si.
Poderia falar da luta titânica que travou nos últimos tempos, contra o gigante que não lhe deu tréguas, que o obrigou a encontrar forças onde ele não sabia que tinha.
E posso recordar a luta contra si mesmo, quando, 15 minutos após eu lhe ter ligado e ter tido uma conversa em que ele estava mais “alheio”, ele me telefona e me diz: “Há pouco eu não estava bem, vamos conversar agora…”. O resto, não vos interessa.
Obrigado Padrinho, por tudo, incluindo este último telefonema que fizeste! Obrigado por teres mostrado como se luta contra tudo e todos, apesar de tudo o que a vida possa lançar contra nós! Obrigado por teres sido sempre a personificação das palavras do avô, e por me incitares a arriscar sempre! E obrigado por não permitires que a nossa última conversa fosse menos do que perfeita, por até às portas da morte e ultrapassando o limiar humano da resistência à dor, teres encontrado a força para manter a lucidez, a razão e o carinho!
Adeus!