domingo, 8 de novembro de 2009

Ritmos africanos

“Não.”

Ela recusava-se a ouvir o som que os ouvidos lhe transmitiam.

Havia vestido umas calças de cintura descaída, aparentemente largas, mas que lhe desenhavam muito bem as formas por baixo. Um top cai-cai, já que se podia dar a esse luxo, revelava pele morena e uma barriga lisa. A maquilhagem também estava bem desenhada, com linhas negras rodeadas de um sombreado verde-azeitona a prolongar-lhe o formato dos olhos, e um batom que lhe escurecia o tom dos lábios finos, ao mesmo tempo que lhes aumentava o brilho.

Tinha chegado mais do que elegantemente atrasada, com um sorriso e um beijo para todos os que conhecia. Um Gin Tónico depois, dirigiu-se para o centro da pista, onde ele já se encontrava. Iniciou a sua dança feita de movimentos europeus misturados com angolanos, sem nunca nele pousar os olhos. Ela sabia o quão provocante a indiferença pode ser, se em doses controladas. Contudo, todos os seus movimentos, apesar de não o parecer, a ele estavam dirigidos. Não por qualquer motivo romântico. Nem mesmo uma atracção sexual, se bem que sexo estivesse nos planos. Apenas queria que ele a quisesse sexualmente, tal como havia querido outros noutras noites e outros quereria depois.

Prática e um dom pessoal, talvez o de uma personalidade assim construída, haviam-na dotado de imensa perícia nos movimentos e ondulações, nos olhares indiferentes enquanto as ancas provocam, no virar de costas enquanto o rabo convida, nos olhares fechados enquanto a pélvis balança e o rosto se ilumina de prazer pseudo-antecipado.

Quando o DJ muda para Kizomba, ele convida-a, tal como espera. E, tal como já tinha observado, ele era bom. Havia praticado. Uma braço quase enlaçado nas suas costas, a mão descendo ao fundo das costas e além. A outra mão no ombro, os dedos perto do pescoço. Ela agarra o meio das suas costas enquanto lhe puxa a cabeça pela nuca até ao pescoço.

Há quem pense que Kizomba é masculino. Na verdade, é um veículo bem feminino de sedução e expressão da sensualidade e sexualidade feminina. Ele conhece bem o seu papel. Sempre colados, vai-lhe dando o espaço para a sua dança. Guia-a em passos de 2 por dois, que mudam para 1 por dois, para um por um, e para 2 por 2 outra vez… Nos intervalos, as pausas, em que apenas ela se mexe, as ancas rebolando e a pélvis provocando-o constantemente. É um ritmo quente. Tal como ela.

Sabem que estão a ser observados. olhares de cobiça e inveja, alguns de desdém. Ele não se importa. Ela vibra com isso. Continuam por mais 5 músicas, os seus corpos já transpirados devido ao calor da sala, das luzes, e dos seus corpos sempre colados.

Por fim, ele afasta-se. Trocam sorrisos e ele vira costas para uma bebida. Ela dança sozinha mais um pouco. Vai ter com ele ao bar e pergunta-lhe: “Vamos a minha casa?”

“Não” é a resposta que continua sem querer ouvir.

Expatriado

De volta, passados tantos meses. Pelo menos, assim o espero!

A vida em Angola está repleta de desafios. Sempre acreditei que somos tão grandes como os desafios que superamos. Sem dúvida alguma, Angola provou ser um desafio constante e enorme. Ao contrário do que se possa pensar, não é a falta de certos luxos ou confortos, por mais que isso pese. Também não é a falta dos amigos ou familiares, se bem que isso pese muitíssimo.

Não… O grande factor que contribui para que vários tugas desistam ao fim de uma semana, e tantos, mas tantos, desistam ao fim de um ano, é a total disparidade das pessoas face ao que consideramos familiar.

Faz-me lembrar uma anedota que ouvi há muitos anos: A professora pede à menina rica para descrever uma família pobre. O seu intuito é que a menina perceba as diferenças de classes e a sorte que tem. A menina, que até tem bom coração, vai para casa trabalhar no assunto. No dia seguinte, apresenta a sua composição: “Era uma vez, uma família pobre. A mãe era pobre, o pai era pobre, a ama era pobre, o jardineiro era pobre…”. A menina simplesmente não conseguia imaginar uma realidade tão diferente da sua.

Não é de pensar mal da menina da história. A maioria de nós só conhece e consegue perceber a vida de outras classes porque a observamos e com ela interagimos. E esse é o grande problema de tentar perceber a vida em Angola. Não é uma escala europeia reduzida devido à falta de certas infra-estruturas ou bens. É toda uma cultura diferente, completamente diferente da nossa.

E essa é a grande razão para que tantos tugas decidam voltar a casa ao fim de um ano. É que as diferenças vão-se tornando cada vez mais discerníveis com o tempo que cá passamos. E um sentimento de desenquadramento acentua-se. Em todos os países por onde os tugas se espalham, nascem comunidades que tentam preservar algo em comum de Portugal. Mesmo quando a maioria desses países apresentam culturas e valores muito semelhantes aos nossos, por terem as mesmas bases (Império Romano, Igreja Católica, troca mercantil, etc…). Em Angola, essas semelhanças são apenas aparentes.

Apesar de todos os anos de colonialismo, apesar das dezenas de milhares estrangeiros que aqui habitam, Angola conseguiu assimilar parte dos hábitos “ocidentais”, mantendo em grande escala a cultura que sempre tiveram, uma das mais antigas do mundo.


Mais do que as dificuldades, a falta de luz e água potável, os preços exorbitantes, é a diferença cultural que mais dificulta a vida em Angola. E, para isto, ninguém pode ser avisado. Tal como a menina da história, não há como explicar aquilo que tem de ser vivenciado.