terça-feira, 30 de outubro de 2007

Reciprocidades

Abandono rapidamente o lugar onde havia pernoitado e aventuro-me uma vez mais nos caminhos solitários. Sei que poderia lá ficar. Havia lugar para mim, desejavam-me lá, ofereciam-me tudo o que tinham, quase tudo o que eu quereria. Tratavam-me muito bem e poderia ocupar o lugar de destaque. Mas eu não era recíproco com as gentes daquele lugarejo. Despedi-me de todos e convidei-os a viajar comigo. Saí logo a seguir e fiz-me ao caminho. Talvez se me juntem… talvez não.

Paro um pouco para descansar. Acendo uma fogueira para me aquecer e instalo-me para confirmar a direcção.

Uma das premissas do início da minha viagem foi a reciprocidade. Recordo a facilidade com que confiam em mim, a rapidez com que um estranho partilha toda a sua vida e todos os seus medos comigo. Sempre foi assim, desde pequeno. Como se o simples acto de me confiar lhes aliviasse o fardo. Pedidos suplicantes de ajuda, de auxílio, de apoio, que eu nunca negava. Relembro todas vezes que me embrenhei a cuidar de almas perdidas e à deriva, como movimentava um leque enorme de pessoas para essa missão, como cuidava e curava e como sorria quando finalmente seguiam o seu caminho, se sustentavam pelo seu pé.

Reconheço a arrogância dessa posição. Como se de um centro de apoio me tratasse, bem estabelecido e sedeado em mim próprio, na minha força, nas minhas convicções, na minha resiliência. Como se eu próprio já tivesse atingido os meus objectivos e, do alto do meu pedestal, sorria placidamente e espalhava compreensão, ajuda e compaixão sinceras. Como se eu próprio não precisasse do que distribuía alegremente. Como se eu próprio não fosse um pequeno colibri, em busca de apoio para mim.

E vejo agora que só me posso censurar a mim próprio quando apenas alguns me apoiam quando preciso. Sempre viram o que eu mostrei, alguém que se sustinha a si próprio. Vestia uma máscara elaborada, tão completa que muito poucos vislumbraram para lá dela. Sei também que é por isso que reconheço com tanta facilidade as máscaras quotidianas: reconheço-me a mim próprio, à espera de quem me viesse salvar. Sempre fiz aquilo que ansiava que me fizessem.

Abro os olhos e espreito o fogo quase extinto. O rumo está corrigido, a rota traçada.

Não quero ser salvo, quero companheiros de viagem. Não quero salvar, quero entreajuda. Aponto os meus passos na direcção do companheirismo e da camaradagem sinceros, onde as máscaras são forçosamente despidas. Quero dar, sem esperar receber, quando de tal for capaz. Quero dar e receber, numa relação de reciprocidade, e deixar que percebam que o quero.

Olho para trás, para o lugarejo que abandono. Com renovada confiança, percebo que não deixarei que outros façam o que eu sempre fiz. Eu não era recíproco, fiz bem em sair.

A viagem prossegue… mas sei que ainda agora começou. Que desafios espreitam para lá daqueles montes?

10 comentários:

Marta disse...

Uma das coisas que aprendi na minha vida foi que se somos nós quem estamos sempre prontos a ajudar, os outros passam a ver-nos como alguem imensamente forte, que tem garra para ajudar tudo e todos mas que por isso mesmo nunca precisa de ajuda! E isso é um erro! Um tamanho erro, mas o erro é nosso, porque essa foi a mascara que usamos para eles e eles só estão a ver aquilo que nós deixamos que eles vejam!
Para haver reciprocidade e entrega, temos que primeiro que tudo aprender a tirar a mascara!

beijinho

S disse...

Pois, sei bem o que isso é. Mania que és sempre muito, muito, forte. E às tantas, até és... Mas depois vêm aqueles momentos de fraqueza e nínguém se apercebe que tua força foi de férias e que também tu precisas de uma mãozinha amiga.
A reciprocidade é um dos caminhos. Sermos nós próprios, assumindo forças e fraquezas, partilhando-as, é um passo em frente para um "EU" mais verdadeiro.
Beijos

ps: já tens resposta ao teu comment também... Bébé ;)
(desculpa mas não resisto hehehe)

Hélder disse...

Marta,

Também já aprendi, e apontei o meu rumo noutra direcção. Resta saber se não me distraio...

Beijinho.

Hélder disse...

Sylvia,

É isso mesmo. Isso e saber guardar as pessoas certas perto de nós.

Beijinho.

(Lembro que a vingança se serve fria... cuidado) ;)

S disse...

Vingança?!?!
Uhhhhhhhhhh Medo, muito medo. hahahaha

ps: náo dá para aquecer a tal de vingança no microondas ou assim. Ah já agora, acompanhas isso com uma garrafinha de Cabriz??? isso é que era mesmo o ideal hehehehe

Dina disse...

Essa aprendizagem faz parte da vida. Quantas vezes me vi nessa situação de ser sempre o ombro onde todos procuravam consolo e nunca se apercebiam que eu também precisava e quando lhes fazia ver isso nem sempre obtinha a reacção esperada. A vida ensina-nos a dar e a receber.
Agora mudando de assunto...quanto ao jantar, todos são bem vindos e vamos concerteza arranjar um restaurante que agrade a todos ou pelo menos à maioria. Mais perto da data será dito hora e local. Podes convidar outras pessoas...só precisamos saber quantos são para podermos fazer a reserva das mesas.

Anónimo disse...

Hmmm...
Deixa ver: Falaste de reciprocidade, mas também de dar, sem esperar receber... Complicado...

Acho que o facto de ajudar os outros, sem exigir nada em troca, não tem nada de arrogante... Pelo contrário! É nobre e dificílimo de conseguir... Se tu o conseguias e os outros não te "reciprocavam", penso que o problema estaria com eles!...

Mas que sei eu da vida?! Muito pouco, para estar onde me encontro... :(

Uma coisa te digo: é bem melhor ser generoso e, de vez em quando, apanhar com um balde de água fria, do que passar a vida a olhar por cima do ombro, a duvidar, por defeito, da genuidade dos actos, palavras ou sentimentos dos outros...

Sim, querer reciprocidade é bom e saudável.
Mas não te tornes demasiado céptico...
Não é bom...

Hélder disse...

Sylvia,

Espera para ver...

Hélder disse...

Dina,

Vejamos se a aprendizagem é posta em práctica.

Beijinho.

Hélder disse...

Alfacinha,

Focas as questões certas.
Eu chamo a minha posição de arrogância porque vinha de uma posição em que não me encontrava.

Não perdi o meu lado generoso, mas tenho que aprender a doseá-lo melhor. E tenho que saber mostrar às pessoas que também eu preciso de tempo para mim, também eu preciso de ajuda de vez em quando. Por isso digo que quero dar sem esperar receber apenas quando de tal for capaz. Mas quero mais reciprocidade, para mim e para os outros.

Beijinhos.