terça-feira, 2 de outubro de 2007

Primeiros Passos

Dou (de novo) os primeiros passos no planeta Terra. Experimento ainda a nervosa sensação de estranheza. "O mundo não está como eu me lembrava dele", penso para comigo.

Experimento o contacto com pessoas novas. Recordo-me de mim próprio, muitas vezes a alma da alegria. Sempre me dei bem no contacto social. Quando viajo, quase sempre entabulo conversa com alguém.
"É como andar de bicicleta. Nunca se esquece." Sorrio com este pensamento e animo-me.
"Não te esqueças, há que gerir bem as expectativas. E dá-te apenas às pessoas que te quiserem receber!", exclama a vozinha da auto-protecção.
"Não te preocupes tanto. Sei o que estou a fazer."

Vamos sair, são me apresentadas pessoas novas. Rio, converso, questiono. Faço outros rir e descontrair enquanto falamos de tudo e de nada, numa sucessão sem sentido para quem não está lá. Facilmente, descontraidamente, apenas pelo prazer de conhecer pessoas novas, realidades distintas. Por sua vez, fazem-me rir a mim, partilham um pouco de si. Os nossos caminhos cruzam-se, ainda que por breves instantes.
"Todo o homem que encontro me é superior em alguma coisa. E, nesse particular, aprendo com ele." - Emerson.

Inesperadamente, estou temporariamente sozinho, num oceano de desconhecidos. Bem, talvez apenas um pequeno lago. "Muito bem, como estás? Lembra-te que disseste estar cicatrizado, mas não convém esforçar cicatrizes tão frescas. Seguras-te sozinho?" questiona a vozinha. "Está tudo controlado. Vai descansar", respondo sorridente.

Mesmo assim, finco os dois pés no chão e lentamente percorro o espaço com o olhar. "Não há problema, estive acompanhado por prazer, não por necessidade", concluo. Os meus olhos encontram outros na noite. Um par deles exibe uma expressão triste. Deixo o meu sorriso interior espreitar para os meus lábios. O sorriso de resposta é estranho: não é tímido, não é amarelo, não é de defesa... é solitário, como uma prece de ajuda. Não forço, continuo a deixar o meu olhar percorrer toda aquela gente que dança e (aparentemente) se diverte. Permito-me entrar um pouco em recordações, testando-me. "Sim, o tecido cicatricial ainda experimenta alguma dor, mas aguenta." Exploro um pouco mais, vou um pouco mais longe. Não tenho que fingir, não tenho que fugir. É possível misturar o prazer de estar ali com alguma nostalgia e alguma dor.
Volto a fixar os olhos tristes. Reparei que têm estado furtivamente a tentar encontrar os meus. Percebo porquê, não é habitual alguém estar tão à vontade pelo facto de estar sozinho. Transpareço auto-confiança, talvez um pouco mais do que a que sinto. Ou então transparece a serenidade de quem está à vontade com tudo o que acontecer.
Viajo até aqueles olhos. "Olá. Tudo bem?" Nada de frases pomposas ou de engates parvos. Conversamos um pouco, os olhos vão mudando um pouco de expressão. Chega uma amiga dos olhos tristes, olha para mim e pergunta, por entre o caucofonia da música, "Tudo bem?". Ela acena com a cabeça que sim. Conversamos mais um pouco. Não danço, apenas me balanço um pouco, deixando a música atingir-me, em ondas. Ela dança, um pouco. Vai-se animando.

Eis que retornam os meus novos-conhecidos. Os olhos tristes fogem da exposição como uma barata da luz, mas encontro-os mais tarde, uma única vez, olhando-me com mais ânimo. A noite prolonga-se até de madrugada, ficamos a rir, a conversar e a descontrair até altas horas. Sai uma guitarra do carro, afino-a e canto qualquer coisa. Prolongamos o convívio até ao máximo.

Retenho o que ouço, tento aprender. Respondo como habitualmente, demasiado sincero e directo. Sei que me exponho, mas também sei que é por isso que as pessoas geralmente confiam em mim tão pronta e rapidamente.

Os primeiros passos de regresso a mim mesmo. Não, não é preciso esquecer, não é preciso odiar, sentir raiva, olhar (apenas) em frente ou qualquer um destes escapes. Eles dão apenas uma ilusão de segurança, úteis apenas se não se olhar para lá do vazio que representam. A realidade tem de ser entendida em toda a sua plenitude, o mundo apresenta-se como um estranho complexo, hostil e cativador, belo e agressivo.

Cabe a cada um de nós encontrar o seu papel nesta dicotomia, sem subterfúgios nem inanidades, mas tal como ela é.

19 comentários:

Afrika disse...

tudo leva o seu tempo a curar... mas este cura tudo! ou ha de curar...
Bjs

Anónimo disse...

devagar todos chegamos la!
com tropeços e abraços!
obrigada pelo carinho!
mesmo!
beijoca!

Anónimo disse...

Lamento discordar.
Sobretudo é preciso viver.
E ser feliz.
E isso pode implicar, para alguns, esquecer, odiar, sentir raiva e olhar (apenas) em frente. E isso não é necessariamente um escape ou ilusão de segurança. É sobrevivência. Não deves tentar aplicar a tua fórmula a todas as situações e a todas as pessoas.

Cada um sabe de si.

E, felizmente, não somos todos iguais.

E, infelizmente, a vida é, muitas vezes, injusta.

Hélder disse...

Alfacinha,

Não lamentes discordar, tens todo o direito de o fazer. Se vês as coisas de maneira diferente, enriquece o meu ponto de vista. O pouco que argumentaste refere que não é necessariamente um escape ou ilusão de segurança. É sobrevivência. Ora, o facto de ser sobrevivência é uma justificação para os usarmos, não demonstra que não sejam vazios em si mesmo. Tal como escrevi, úteis apenas enquanto nos auxiliam a sobreviver.
Pois eu defendo que é possível sobreviver de outra maneira, encarando o mundo cruel e injusto tal como ele é.

Contudo, num texto claramente pessoal, não posso aceitar uma acusação de tentar aplicar uma fórmula a todos. É um devaneio, um desabafo, um voo meu que decidi partilhar. Cada um trilha o seu caminho e cada um de nós sabe de si. Tal como já escrevi também, o máximo que os amigos podem fazer é sugerir caminhos, apontar-nos as auto-ilusões.
E, já agora, o prórpio intróito do blog diz: "E, como devaneios que são, provavelmente não vão seguir uma sequência lógica, não vão ter um tema em comum, não vão ser coerentes entre si e não vão ensinar nada a ninguém."

Anónimo disse...

Lamento discordar novamente.

O facto de ser sobrevivência não demonstra que SEJAM vazios em si mesmo. Nem tão pouco significa que tapemos os olhos e não vejamos a realidade como ela é.

É um texto pessoal, bem o sabes.
E o facto de não aceitares a "acusação" devia coibir-te (pelo menos, moralmente) de "devolveres" a acusação, insinuando que a minha "sobrevivência" é oca e cobarde...

Hélder disse...

Cara Alfacinha,

Provavelmente, não me expressei bem. Queria dizer que o MEU texto era pessoal, e não a tentativa de aplicar uma fórmula a todos.
E, como pessoal que é, e o retrato dos meus primeiros passos após uma viagem de auto-descoberta, manifesto o que eu descobri e como isso me permite encarar o mundo "as is".
A tua sobrevivência, ela nunca será oca, pois a ela em si própria é essencial. Mas há formas melhores para nós próprios de o fazer, pelo menos, eu assim o entendi para mim.
Quanto ao esquecer, odiar, sentir raiva e olhar (apenas) em frente, para mim, são úteis APENAS porque permitem sobreviver. Mas, mais uma vez na minha opinião, não são a melhor forma de encarar a realidade, acabam por se virar contra nós e não nos tornam mais felizes. Pelo contrário, pesam-nos a cada passo, minam a nossa própria felicidade e contribuem para tornar-nos em pessoas angustiadas, defensivas e miserabilistas, coisa que não pretendo para mim.
Mas cada sabe aquilo que quer, como o quer e no que se apoiar.

Espero que a tua sobrevivência passe rapidamente, para que também possas recomeçar a viver.

Marta disse...

Bonito texto
Entendi o teu ponto de vista e concordo!
Acho que temos que encarar o mundo sim, tal qual ele é e tirar de lá as nossas lições de vida!
Sobreviver para mim não é viver, longe disso, é tão somente passar pela vida!
A raiva, o medo, o ódio, são apenas o airbag da tristeza, que o nosso ego teima em inventar como forma de fugirmos da nossa própria dor!
O mundo não é perfeito, nem é suposto ser, mas se calhar o nosso desafio é aceitarmos a sua imperfeição e provavelmente passaremos a olha-lo de outra forma, percebendo que até pode ser perfeito no meio de toda a sua imperfeição!
beijinho

Hélder disse...

Marta,

É isso mesmo, seremos mais felizes se aceitarmos o mundo tal como ele é, sem ilusões. E, depois de o aceitarmos, podemos verdadeiramente apreciá-lo, e não a nossa ideia dele.
Gostei da expressão "o airbag da tristeza. A sobrevivência, em alturas de crise pessoal, é importante porque nos permite recomeçar a viver e porque permite lançar a nossa vida numa nova direcção - e essa direcção é influenciada pela forma como dirigimos a nossa sobrevivência.

Anónimo disse...

Colibri,
Talvez EU não me tenha feito entender.

Disse que, para alguns, pode ser necessário uma ou várias daquelas coisas que TU consideras escape e ilusão.

Mais uma vez, não quer dizer que, por considerares que isso não é o caminho para a felicidade, não o seja para os outros. Nem tão pouco que seja "fugir" à realidade.

E quando disse "minha sobrevivência" estava a referir-me à minha expressão.

Eu vivo.
E sou feliz.
Espero que o sejas também.

Rui Caetano disse...

Pé ante pé, passo a passo, o caminho ergue-se à nossa frente ao compasso da nossa vontade e querer.

Hélder disse...

Rui Caetano,

Sê muito bem vindo ao meu Canto.

Passo a passo, um dia de cada vez, e ter a consciência de que o caminho, mais que o destino, é que verdadeiramente nos define e nos identifica.

Um abraço,

Melissa Yedda disse...

Adorei teu texto,identifiquei-me muito com ele. Tua maneira de expor as coisas, faz-me lembrar de como tantas vezes me sinto. Muito legal! Adorei estar aqui. Um abraço!

Hélder disse...

Melissa Yedda,

Muito obrigado. É bom encontrar quem veja as coisas da mesma forma.

Um beijinho.

S disse...

Concordo contigo e concordo com todos. Nessas coisas de cura, cada um sabe o melhor remédio para si :). Gostei do teu cantinho. Beijinho

Hélder disse...

Sylvia,

Sê benvida ao meu canto, é bom ter-te por cá.

Realmente, nestas coisas cada um sabe de si.

E sempre que tiveres 5 minutos, passa por cá. ;)

Beijo.

Anónimo disse...

Olá!

Olha que coisa mai linda.

Pelo menos, fica o conforto de quem lê as estas palavras de que enm todos os homens, são "homens com minúsculas", como menciono no meu último post.

Muito bom, vou voltar com mais tempo!

Bjinhos

Hélder disse...

Olá Azul,

Obrigado pelas palavras, mas vou esperar para ver se manténs a tua opinião depois de leres o resto.

Já tinha lido a tua entrada, vou lá deixar-te um pequeno comentário.

Beijos.

Azul disse...

já cantas lá nos links!

E ainda não consegui ler tudo,( é suposto estar a trabalhar...shiuuu), mas tou a gostar muito!

Hélder disse...

Boa tarde Azul,

Fica o tempo que quiseres. Como diz o intróito, são apenas devaneios pessoais, voos sem sentido.

Cuidado com o chefe!! lol

Beijo.