quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Barbas

Apetecia-me aquele prazer burguês. Sempre gostei que mo fizessem.
Dirijo-me ao espaço que penso ser próprio, preparo-me para me refastelar e vem a resposta: "Não fazemos isso."
Saio desiludido e entro noutro espaço. A mesma resposta.
Entro num táxi, vou para o outro lado da cidade. Começo a pensar que os tempos mudaram... Certos prazeres começam a ser mal vistos, nesta sociedade cada vez mais impessoal e de pronto a consumir. Não sobra grande espaço para o tratamento personalizado e a atenção dedicada do que pretendo. Começo a ficar frustrado.
Entro noutro espaço. Antes de me começarem a servir pergunto se me dão o que quero. Um sorriso profissional e mais uma negativa. Talvez ali, sugerem.
Percorro o corredor, já preparado para mais uma negativa. A menina de cabelo cor de rosa e piercings nas orelhas e tala na língua ouve-me e exclama: "Não efectuamos esse serviço!"
"Até parece que pedi um broche!", digo para mim próprio.
Quero apenas que me façam a barba. Refastelar-me enquanto alguém se dá ao trabalho de me rapar os pelos faciais, como sempre gostei.
Sei que o meu barbeiro faleceu, mas dirijo-me para lá, na esperança de que estejam abertos outra vez. Um familiar em arrumações informa-me que fecham aos Sábados ao meio-dia, agora... Não sabe onde posso ir.
Fazer a barba tornou-se um serviço quase proscrito, é demasiado pessoal, pode aparecer sangue e deve ser proibido por lei e verificado pela ASAE. Decido que tenho de me dirigir aos clássicos pontos de ligação com o submundo - os taxistas.
Pergunto a um, com bom aspecto, onde posso encontrar um barbeiro, daqueles que fazem barba e tudo. O homem parece confuso e aponta-me um colega. "Ele deve saber."
O tipo é enorme, 120 kgs, casaco de cabedal com forro de lã de carneiro, olhar carrancudo e duro. Faço a mesma pergunta. O tipo mede-me de alto a baixo e diz:
"Está a ver aquela casa amarela. Ao lado tem um rua estreitinha e escura. Suba a rua e quando ficar plana, entre na casa à esquerda. É a barbearia do Zé. É lento, mas faz-lhe a barba."
Sigo as instruções. Começo a subir a rua, afastando-me do resto da realidade. Passa um casal, muito novo, de fato de treino, com uma filha mascarada de joaninha. Um velhote, perdido de bêbado. Duas vizinhas, na cavaqueira sobre as outras, que me fitam sem pudor. Continuo a subir. Um jovem a acender um charro, olhar perdido e derrotado.
Entro na barbearia. Surpreendidos por me verem, três velhotes quedam-se em silêncio. Um deles levanta-se e manda-me sentar.
"Faz a barba?"
"Claro que sim."
Encosto-me na cadeira, com uma sensação de vitória. Estava difícil. O homem é lento, e podia ser melhor... mas não é mau. Trabalha à antiga, com uma prelecção sobre política, futebol, crime, sexo, aos quais se juntam os outros dois companheiros, um deles auxiliado pelo jornal para tópicos de conversa. Discutem uns com os outros e insultam-se mutuamente, enquanto me pedem que tome partido por um dos lados. "Então está por Lisboa? Essa gente não sabe o que faz, por culpa deles é que isto está assim..." Sorrio com o bairrismo tão típico daqui.
No fim, pergunto quanto é. "€2." Deixo 3, atónito.

É por isso que continuo a preferir fazer as minhas compras em Santa Catarina, 31 de Janeiro e arredores. Não quero um mundo anti-séptico, de tratamentos frios e impessoais. Além disso, de serviços sem rosto e sem responsabilidades. Não sou de extremos, e reconheço as conveniências das grandes superfícies, e muitas coisas são lá adquiridas. Mas reconheço a importância de poder dirigir-me a quem atendeu e exigir um melhor serviço, ou uma atenção pessoal.

Numa época em que magotes de pessoas recorrem ao esoterismo e à religião em busca da sua individualidade, em que dezenas dos nossos conhecidos se sentem perdidos e sem identidade, cada vez é mais difícil sermos distinguidos. Somos apenas um número, mais um na fila, perdidos entre milhares de outros iguais.
A eficiência tem de ser um critério de selecção de negócios, sempre. Mas não é o único critério a ser aplicado, e pode não ser o mais importante.

Para o Sr. Zé, barbeiro que faz barba, um grande bem-haja.

Adenda: Embora o departamento de higiene e segurança do trabalho nada tenha a dizer, uma perita externa para a qualidade classificou a obra como imperfeita. Sr. Zé, espero melhores resultados na próxima vez!

40 comentários:

Carla disse...

e é nessas pequenas coisas que se marca a diferença. Nos pequenos gestos de quem marca um encontro secreto com o tempo e tem tempo para o saborear
Obrigada pela visita

Gi disse...

Podias-me ter dito ;)

Anónimo disse...

Tu encontraste uma joaninha? Eu grande parte do fim de semana só vi abelhas...

Perita externa para a qualidade?! Isso existe! Não fazia ideia! E como inspecciona ela (ou ele) o trabalho?!

S. disse...

lol... pronto, pronto! Tens aqui mais uma pessoa disposta a fazer-te a barba, a custo zero! Não me importo de ceder a certas burguesias! ;)

S. disse...

ah... e sendo grátis, a perita externa da qualidade não poderá pôr defeitos, poderá?!

beijinhos

Anónimo disse...

Oh pá!... Quando disseste "mais normal" confesso que não estava à espera disto!

Confesso também que, ao ler as primeiras linhas, me ocorreu a mesma pergunta que fizeste a ti mesmo!... :)

Em relação ao tema... Confesso, mais uma vez!, que percebo e concordo com a quase "extinção" do "serviço"... ;) Pela questão da higiene, obviamente.

Mas sim, também concordo que estamos a ficar despreocupados, permissivos, mal-educados... Estive em Londres e fui muito bem tratada. Cheguei a Portugal, dirigi-me a um funcionário com uma dúvida e não mereci sequer que o senhor me olhasse na cara enquanto me grunhia uma resposta pré-formatada...

E ainda enchemos a boca para dizer que somos acolhedores...

E penso que é uma responsabilidade de cada um de nós cultivar esta "gentileza" no nosso dia-a-dia, no trabalho, nas relações pessoais e em tudo. Para que possa ser recíproca um dia. E para que a possamos exigir merecendo-a verdadeiramente.

Kisses!

Eme disse...

Há tanto que o Homem se perdeu daquele mundo fechado que dava sentido a alguns "fazeres" da existência constituindo uma referência ao seu saber, ao seu amor àquelas símples profissões em que se servia bem estar e algum mimo, como os barbeiros tradicionais hábeis com a navalha ou os engraxadores de sapatos ou ainda os assadores de castanhas no inverno. Encantam-me, são figuras que sempre que posso gosto de captar na máquina fotográfica por as achar em vias de extinção. Independentemente da perfeição do trabalho (hoje as perfeição é olhada com outros olhos, mais exigente), pena-me que esta arte não se encontre a ser ensinada e continuada por outras gerações. Sim Arte! Porque não? Já são tao raros que merecem ser incluídos numa classe com nome que expresse a força de uma paixão por um saber fazer. E em tantos séculos de existência nunca venderam só o trabalho: venderam histórias.

Gostei da vivência.

Um beijo

Anónimo disse...

ADOREI O TEXTO! cada vez mais acredito que os pequenos prazeres são a nossa 'tábua de salvação' para não sermos engolidos pelo 'mar' da sociedade moderna...

Anónimo disse...

tava dificil...
mas la encontrou...
hoje em dia o serviço ´impessoal...
beijoca...

African Queen disse...

Ora, essa... então afinal tu tb és um gajo do norte!? Tás infiltrado na capital lol?

tavguinu disse...

no Bento nas Amoreiras fazem, e arranja as unhas com a loira :-)

Hélder disse...

carla,

É preciso também saber parar e apreciar, para voltar a correr de seguida. Não nos atrasa nada.

Beijinhos.

Hélder disse...

gione,

Estava no Porto. Para a próxima passo por tua casa primeiro! ;)

Beijinhos

Hélder disse...

blackstar,

Eu também me fartei de ver abelhas! Mas encontrei uma joaninha naquela ruela.

A perita externa para a qualidade usa a visão, mas acima de tudo o tacto! :P

Beijos

Hélder disse...

sofia,

Aceito! Até fica a caminho e tudo, faço uma viagem mais tranquila!

Não te esqueças que é uma perita externa, portanto não está subjugada a nenhuma autoridade da minha parte! ;) Mas eu confio nos teus dotes!

Beijinhos.

Hélder disse...

alfacinha,

Fiz de propósito para parecer assim, porque foi o que acabei por sentir.

Luvas e lâminas descartáveis resolvem o problema da higiene.

Perdemos o nosso carácter mediterrâneo de deixa andar. Aquela indolência de que nos acusam já quase não existe, de tão preocupados que estamos com pequenos nadas que tornamos grandes.

E esses mesmos problemas que hiperbolamos resultam na atitude que descreves. Uma atitude cinzenta que contagia os outros.

Por isso, toma lá um sorriso para ti! :)

Beijocas

Hélder disse...

m.,

No cerne da questão, como sempre. Arte, sem dúvida. A exigência é importante, a mudança é essencial para a inexistência do marasmo. Mas as últimas foram feitas com arrogância sobre tradições milenares que encantaram e agradaram gerações.
Não sabemos tudo, e seria estúpido descurar aquilo que foi aprimorado por dezenas de anos e centenas de Artesãos.

Eu gostei da última parte. A busca já me estava a irritar. :)

Beijo

Hélder disse...

gata,

Os pequenos prazeres são grandes. Nós é que os ignoramos! ;)

Hélder disse...

catworld,

Foi uma quimera. :)

beijinhos

Hélder disse...

african queen,

Vim para cá infiltrado espalhar o caos e o terror! Não me estavas a achar com qualidades a mais para ser daqui? ;)

Hélder disse...

tavguinu,

Obrigado! Para a próxima saio da capital já "aviado"!.

Afrika disse...

Gostei... muito mesmo não pelo desfazer da barba (evidentemente) mas pela maneira como foi descrito! Adoro, tudo o que tem a ver com tradicional e pessoal. Adoro fazer compras nessas lojas tradicionais onde se trata a pessoa que vende por tu e que nos fazem sentir tão a vontade... pena estarem a desaparecer!
E ja agora, uma perita externa para a qualidade?!!! Ai que muito me contas! Sim, sim... LOL

V. disse...

Agora percebi o teu comentário :)

Sem dúvida!

(Essa tua perita não pode ser muito exigente com o Sr. Zé que agora pelos vistos é dos poucos a fazer a barba aí no Porto. Muito bem tratadinho, o sr. Zé! Já é quase patromónio nacional! lol)

V. disse...

outra coisa que me esqueci: pensei que essas conversas eram só requisito nos cabeleireiros onde os temas não passam obviamente da vida alheia, de peferência vizinhos e outros conhecidos. É por isso que raramente vou ao cabeleireiro. Gostoimenso que me lavem o cabelo mas a tortura de estar ali a ouvir aquela conversa fiada toda... não compensa.

Talvez comece a procurar barbeiros ;)

Rita disse...

já foste ao cinema ver o Sweeney Tood? : 0 )(já q s fala em barbeiros...)

Anónimo disse...

Passa no meu blog.

Tenho um desafio para ti.

Beijoca

Hélder disse...

afrika,

Também prefiro o comércio tradicional, pela acompanhamento extra que vem associado aos serviços base. E não gosto deste distanciamento anti-séptico que começamos a criar nas relações sociais.

Hélder disse...

Lady MIM,

A conversa dos barbeiros é do melhor que há! Nunca há isenção de opinião sobre temas da actualidade. Naquele caso, conseguia ter posições completamente antagónicas, dependendo de qual dos velhotes era o seu interlocutor!

Mas não vás a barbeiros! As mulheres ainda são lá interditas, felizmente! ;)

Hélder disse...

Rita,

Ainda não fui... espero é que o barbeiro não vá! ;)

Hélder disse...

maeve,

Já vou.

Carla disse...

passei por cá para te desejar um bom fim de semana e dizer que te deixei um miminho nos meus "desalinhos"

Elvira Carvalho disse...

Adorei o texto. Embora me faça muita confusão que um homem tanto e se dê a tanto trabalho, apenas para que lhe façam a barba, mas atendendo a que nós também temos certas manias que para os homens poderão ser incompreensíveis.
E já pensou que se fosse a tal perita a fazer-lhe a barba, era bem capaz de ser mais agradável...
Bom fim de semana
Um abraço

Anónimo disse...

O trabalho do sr. Zé estava longe da perfeição, mas o facto de nunca mais o teres visitado ou sequer imitado o seu trabalho é que suscitou queixas, lembras-te?

Sim, porque a perita é um bocadito exigente, mas não exageremos!

Beijo

Hélder disse...

elvira carvalho,

São pancas! Na altura estava-me mesmo a apetecer que me fizessem a barba.

Seme fizesse a barba, perdia o seu estatuto de perita EXTERNA, deixando de se aplicar o critério da imparcialidade! ;)

Um abraço.

Hélder disse...

perita externa para a qualidade,

;)

Teté disse...

Esse é um bom porquê: porque é que as barbearias hoje já não fazem a barba aos clientes???

Excelente texto!

Melissa Yedda disse...

Puxa, nunca li nenhum homem a externar tanto desejo por sentar-se numa cadeira de barbeiro...Muito bom o texto. O prazer descrito pode mesmo ser considerado dos "grandes prazeres"...
Beijinhos

Hélder disse...

teté,

Modernices! Aposto que me arranjavam as unhas e me depilavam as virilhas, se eu pedisse!

Hélder disse...

melissa yedda,

Manias... esta nem é das mais estranhas!

Catarina disse...

Que belo prazer... A verdadeira prova dos nove tira-se da 2ª vez... ;)