Abeirei-me duma povoação em polvorosa, gritos de Revolução ecoavam no ar. A turba convergia para a praça central, em grande frenesim. Sentia-se no ar um ambiente dionisíaco e uma expectativa crescente.
Movido pela curiosidade, juntei-me a eles e tentei indagar de que se tratava. Ninguém acalmava o suficiente para explicar, gritavam apenas que finalmente tinha chegado, a Revolução há tanto tempo esperada.
Sorriam e desfilavam pelas ruas num êxtase frenético de antecipação, em todos se sentia a excitação, o entusiasmo pulsante e a esperança. Por todo o lado, casais perdiam o pudor e entregavam-se ao prazer, demasiado em brasa para esperar. Vizinhos de anos trocavam olhares cúmplices com as esposas uns dos outros, inebriados por um perfume de liberdade.
Sigo para a praça central, onde a cidade está lentamente a concentrar-se por completo. Vêm-se carícias, corpos nus e ouvem-se risos, beijos e gemidos, lembrando-me Patrick Suskind.
Começo a perceber do que se trata...
Começam a levantar-se cabeças, a olhar em volta. Onde estão os líderes da Revolução, perguntam-se. Quem foram os revolucionários e porque deixaram a obra a meio? Cada vez mais rostos intrigados se levantavam. E agora?
Lentamente, a euforia e a adrenalina desaparecem, deixando lugar à hesitação, ao medo e à incerteza. Sentiam-se abandonados pelos revolucionários. No ar, ficaram palavras de ordem e uma ideia de um rascunho de um esboço de uma proposta de um possível novo código moral.
Quase nada, portanto. Sem guias nem dogmas que os orientassem. Sem líderes nem ditadores. Sozinhos.
A incerteza e a dúvida pairavam nos seus rostos. Não conseguiam, ou não queriam, perceber que era o momento em que detinham eles o poder sobre si próprios, em que podiam de facto moldar o seu novo mundo. Começaram a abandonar a praça, tentando em vão assimilar um pouco da liberdade e acabando por a misturar com o velho e fétido código, ainda não totalmente posto de parte.
Em comum, levavam apenas um estigma de liberdade, um cheirinho de responsabilidade. Um direito, que sentiam como obrigação, de serem felizes, embora não soubessem como. Queriam que lhes dissessem como, que lhes mostrassem, como se crianças fossem.
Fiquei a vê-los a afastarem-se. Por instantes, podiam ter acabado de vez com todos os tabus que pautavam esta estranha tribo, e espantado todos os fantasmas e esqueletos dos armários. Tinham a hipótese de começar de novo, de se reinventarem e renascerem de si próprios, mas preferiram desiludir-se com a ausência de instruções, e recolher a medo, polvilhados de dúvidas, às suas casas, a assumir a responsabilidade da reconstrução. Condenaram-se a mais um período de frustração, insegurança, medo, desrespeito e tristeza. A cidade ainda não estava preparada para se auto-erigir e renovar. O medo ganhou desta vez.
Mesmo antes de voltar costas e prosseguir viagem, fixei os olhos no centro da praça. Uns poucos tinham ficado. Decidiam ser os seus próprios mestres, os seus próprios deuses. Perceberam a extinção do antigo e queriam ter uma voz na construção do novo, preferiam o erro à inactividade. Juntei-me a eles por um pouco. Nas vozes, planos entusiastas e mirabolantes, devaneios eufóricos e sonhadores. Os tabus não viviam ali, os medos não se sobrepunham, e aquele pequeno grupo pegava nas rédeas de eles próprios. Deuses de si próprios, reunindo-se para confraternizar no Monte Olimpo, disfarçado de praça central de uma qualquer povoação...
Despedi-me com satisfação. Mais viajantes se formavam.
26 comentários:
"O Perfume" das revoluções precisa de uma coragem que é apenas apanágio de alguns...sem um líder forte não há ideias que se implantem.
Haver quem consiga sobreviver ao medo é já uma pequena vitória
Carla,
Estás a azul, parabéns! Já há uns tempos que estava a ver quando o fazias.
Haver quem se sobreponha ao medo, e assuma a responsabilidade por quem é, é a grande vitória. Mas nem todos são Viajantes...
Beijinhos.
Pois... nem todos são viajantes, é um facto. Não basta fazer a revolução e partir. Há que vivê-la, todos os dias. Porque alguém deixou o trabalho a meio e deixou o povo entregue à incerteza... por isso, é que este país anda como anda.
Onde estão os revolucionários?
Quem tem coragem de fazer uma nova revolução?
Quem tem coragem de fazer o trabalho até ao fim?
...
Belo retrato do nosso Portugal pós revolucinário. Pelo menos, assim o entendo.
Beijo grande
É necessária uma nova revolução!
Desculpa não ler o texto...
só queria alertar para um post de extrema importância que se encontra no meu blog e que não poderia deixar de divulgar...
beijo
Do mais bizarro que já li!
Bom fim de semana pra ti também. Fiquei sem saber o que achaste das respostas... ;)
Beijinho!
cati,
O texto teve imagens de vários lados. Uma delas foi o nosso país e o pós-25 de Abril.
Eu acho que o povo tem de pegar em si próprio. Quanto mais autónomo for, de menos governo precisa. Por conseguinte, menos asneiras são feitas no "meu melhor interesse". ;)
Beijocas e bom fim-de-semana!
marisa,
Eu acho que é preciso é coragem! ;)
Lady MIM,
Isso vindo de alguém cujos gostos musicais são continuamente criticados pela maioria dos seus leitores (eu exclusive) é, no mínimo, BIZARRO! :P
Beijinhos
Eu só gosto de revoluções feitas por mim. É uma mania que tenho.
Todas as revoluções feitas pelos outros, não enquadraram bem o meu perfil!
Meras opiniões estéticas ... as minhas, pois claro!
LOL Estás a dizer que os meus gosots musicais são maus, duvidosos ou bizarros??
Nem sempre é fácil lidar com a liberdade! Todos a pedem, mas, na maioria dos casos, quando a têm não sabem geri-la!
Eis uma das minha palavras preferidas: Revolução!
E tanta falta que ela faz nos dias de hoje, a revolução, no sentido da mudança total... mas a mudança assusta a maioria das pessoas e Revolução é uma palavra que adequiriu quase uma conotação negativa, de radicalismo... é uma maneira dos menos corajosos manterem os seus redutos e a sua segurança porque é sempre muito mais fácil deixar as coisas acontecer acreditando que nada podemos fazer para as mudar.
Eu, por mim, quero uma Revolução já!
O problema nas revoluções, é que apenas meia dúzia de revolucinários, sabe a razão da sua luta e está preparado para ela. O grosso da coluna vai atrás. Como o rebanho atrás do pastor. Se corre bem, só muito raramente. essa meia dúzia irá ter o poder para mudar as coisas. (Muitas vezes passam para o polo oposto, e passa-se duma ditadura, para outra.)Se corre mal, o multidão desaparece e ficam os tais meia dúzia, a tentar de novo. E sim como alguém já disse nos comentários parece que está a falar do Portugal pós revolução.
Um abraço
Para o povo seu autónomo e poder pegar em si própria era preciso que tivesse conhecimentos. Poucos o têm. A maioria deste Portugal anda cá por ver andar os outros. Para além disso, é tão mais fácil ser-se revolucionário num país que não o nosso...
Prémio no Sexta-feira.
Um abraço
DE facto, nem todos são viajantes, isso exige coragem, abertura de espírito e capacidade de sonhar!
gione,
Não há problema nenhum, a revolução é sempre tua, desde que abarques essa responsabilidade. ;)
Lady MIM,
Não! Partilho alguns deles, e não desgosto dos outros. Apenas criticava a coerência e pedia clemência! :P
blackstar,
Lá está! A maioria fica à espera de uma intervenção divina, ou de um D. Sebastião, ou de alguém que se chegue à frente.
Nem percebem que é bem melhor quando assumimos o risco de sermos os nossos próprios ditadores! :)
Beijo
african queen,
Acho que a ideia de responsabilidade assusta as pessoas tanto quanto a ideia de mudança. Revolução aponta para uma mudança geral. Mas em quantos casos não vimos retrocessos ou apenas mudanças parciais, porque ninguém tinha os tomates para arcar com a responsabilidade?
Por outro lado, e que ninguém entenda isto como um argumento favorável à ditadura, porque não os existem, mas quantas vezes não temos mudanças radicais introduzidas por alguém com coragem e que assume a responsabilidade/mérito da decisão?
Faça-se já uma Revolução. Mas não a deixemos a meio ;)
elvira carvalho,
A imagem do Portugal pós-revolucionário acabou por aparecer por si própria e influenciar grandemente o texto. Também versava sobre a Revolução Sexual e todas as mudanças que ficam a meio, deixando as pessoas desorientadas.
Um abraço
alice in wonderland,
Foi um dos nossos problemas, o povo português era praticamente iletrado aquando o 25 de Abril. Acima de tudo, acho que também era muito inseguro, habituado há anos a que decidissem por ele.
carla,
Está tudo dito!
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